Ardvi Sura Anahita, Senhora poderosa e imaculada, que purifica o ventre das mulheres e o sêmen
dos homens, que auxilia as mulheres nos seus partos e coloca leite nos seus seios, abençoe as
águas que fluem em todos os lugares para garantirem nossa sobrevivência e prosperidade.
Anahita, cujo nome significava ”A força imaculada da água” era uma antiga deusa persa, adotada no panteão zoroastriano e tornandose a mais popular das sete principais divindades (junto com Mithra e Ahura Mazda). Ela era a deusa regente da água, Lua, noite, das estrelas (principalmente Vênus), do amor, da abundância, f e r t i l idade e s e xua l idade , maternidade e nascimento, Criadora e Guardiã da vida e Senhora da vitória nas guerras.
Anahita personificava as qualidades físicas e metafóricas da água (úmida, forte, imaculada), especialmente o poder fertilizador que fluía da sua fonte sobrenatural nas estrelas e ela regia todas as águas: dos rios, córregos, cachoeira, lagos, mar, chuva, o orvalho e o líquido amniótico. Devido às suas qualidades maternais, Anahita presidia na concepção e geração das crianças (purificando o sêmen, fortalecendo o útero e abençoando o leite) sendo, portanto, a padroeira das mulheres e crianças, uma das muitas manifestações da Grande Mãe das tradições orientais.
As pesquisas arqueológicas comprovaram que a Deusa Mãe foi a primeira divindade reverenciada pela humanidade, desde o período paleolítico e continuando nas eras seguintes. Antigas estatuetas da Deusa Mãe foram encontradas em Susa, Irã, datadas do quarto milénio a.C.; o culto original iniciado no platô iraniano foi espalhado pelas migrações das tribos arianas para a Mesopotâmia, Síria e Anatólia. Da figura inicial de uma Deusa Mãe surgiram as suas manifestações como padroeira da fertilidade, procriação, agricultura e abundância, associadas com a Lua, certos planetas e constelações. Pela conexão com a Lua eram enfatizadas as qualidades fertilizadoras, geradoras e maternais, enquanto a associação com Vênus realçava os dons artísticos e amorosos. Os navegantes sumérios levaram consigo o culto da Deusa Mãe para o Mediterrâneo, enquanto a expansão ariana o levou para Índia, Ásia central e Europa.
O culto de Anahita se originou na Babilônia, sendo uma amalgamação de uma divindade indo-iraniana (o espírito das águas que fluíam do monte sagrado Hara) e das grandes deusas do Oriente próximo. O povo arménio a chamava de “Grande Senhora Anahita, doadora de vida e de gloria para o nosso povo, benfeitora da humanidade”, lhe ofertando galhos verdes, novilhas, carneiros e potros brancos. Suas bênçãos conferiam fertilidade e prosperidade ao país e os reis eram coroados nos seus templos pelas rainhas, para assim receber sua bênção e proteção. Os gregos a associaram com Athena, Ártemis, Héstia e Afrodite Urânia, enquanto no Oriente médio era equiparada com Anat. Da Arménia seu culto alcançou diversas regiões do leste de Ásia, se tornando preponderante na Pérsia no tempo de Zoroastro. Após a conquista da Babilônia pela Pérsia, pode ser observada a influência e a mescla de elementos dos mitos das deusas da Mesopotâmia Ishtar e Nana, seu culto adquirindo novas características guerreiras e marciais. Em alguns mitos Anahita aparece como consorte de Mithra, antes de desaparecer do culto dele no império romano.
Anahita foi cultuada com vários nomes em diversos lugares; as deusas Anaitis, Anat, Atargatis, Asherah, Astarte, Ishtar, Al-Lat, Cybele, Ártemis, Athena e Afrodite têm em comum certas características herdadas de Anahita e alguns atributos, principalmente os ligados à água, fertilidade, amor, nutrição, gestação, nascimento, cura, guerra e magia. Algumas destas deusas são associadas com o planeta Vênus (a estrela vespertina e matutina), outras têm como título “Rainha do céu” ou “Senhora da água”. Devido à semelhança dos nomes, a deusa equiparada mais frequentemente a Anahita foi Anath, uma deusa canaanita e fenícia, irmã virgem do deus Baal - ou sua consorte-, reverenciada como deusa da natureza, regente da terra, guerra, amor e desejo; ela era representada cavalgando um leão e segurando uma flor na mão. Posteriormente seu culto se espalhou até o antigo Egito, onde era descrita como uma donzela armada e cavalgando um corcel veloz ou como deusa guerreira, portando lança, machado e uma coroa com penas de avestruz. A versão grega de Anahita como Anaitis favoreceu seu culto na Ásia menor e no Mediterrâneo enquanto os persas identificaram Ártemis de Éfeso com sua amada Anahita. Reflexos do culto de Anahita se encontram no arquétipo da deusa eslava Mokusha, reverenciada em diversos lugares até o século dezesseis cujo nome significava ”umidade” sendo regente das águas.
Outras comparações podem ser feitas com a deusa hindu Sarasvati, regente dos rios, da pureza da força vital e da fertilidade, que auxiliava as mulheres nos partos e que era também guerreira destemida; com a deusa romana Juno no seu aspecto de Juno Mater Regina, deusa soberana, guardiã das mulheres e crianças e com a nórdica Freyja, ao mesmo tempo deusa da sexualidade, magia, riqueza e regente da guerra.
Representações de Anahita
Nas suas representações Anahita aparecia ora como uma linda donzela com um diadema de ouro e carregando um jarro com água, ora como Mãe dourada, protetora do seu povo, nutrindo e protegendo-o dos inimigos. Suas estátuas – como pode ser visto em uma do primeiro século a.C. descoberta na Turquia - a representam vestindo um manto dourado e bordado, preso com um cinto de ouro, enfeitado com trinta peles de lontra e com uma flor de romã entre os seios. A sua coroa de ouro tem oito raios e dezenas de estrelas e ela usa brincos, colar e sapatos com enfeites de ouro. Anahita se deslocava em uma carruagem dourada, puxada por quatro cavalos brancos, representando o vento, a chuva, as nuvens e o granizo. Seus animais sagrados eram a pomba, a ovelha, a lontra (cuja pele reflete matizes douradas e prateadas) e o pavão. Com o passar do tempo, Anahita foi adquirindo cada vez mais características da deusa Ishtar, recebendo o título mesopotâmico de “Senhora”, sendo identificada com o planeta Vênus e a sua carruagem puxada por leões.
Diferente de outras deusas leoninas, os leões de Anahita são mansos e bebem água de uma vasilha colocada sob as rodas da carruagem, realçando assim a conexão da deusa com a água. Com a chegada do islamismo no século sete, o zoroastrismo perdeu sua posição de religião dominante no Irã, seus adeptos foram convertidos e os templos de Anahita transformados aos poucos em mesquitas. Porém mesmo na era pós-zoroastriana, o imperador Artazerzes II (que regeu entre 404-358 a.C.) dedicou inúmeros templos e estátuas para Anahita, que continuou sendo reverenciada em diversas cidades como uma poderosa e amada
deusa, antes que o seu culto fosse diminuindo e substituído aos poucos pelo dos deuses Mithra e Ahura Mazda. Nas escavações dos templos de Anahita na Pérsia (agora em ruinas) nas paredes foram achados adornos em prata e ouro, além de inúmeras jóias de ouro incrustadas com pedras preciosas, que tinham sido ofertadas à deusa e que escaparam das profanações e saques dos exércitos do Alexandre, “o Grande”. Em
Lorestan foram achados objetos datados do primeiro milênio a.C. como diversas argolas de bronze e cobre,
tendo nas extremidades placas de prata gravadas com a figura e o nome da deusa. O achado mais importante foi de uma estatueta feminina de argila de 19 cm, adornada com pulseiras, brincos e colar de esmeraldas, enquanto em várias moedas a cabeça da deusa aparecia envolta em um halo de luz. Em Bishapur, no lugar do templo e palácio construídos por Artaxerxes, existia um canal que trazia água do rio Shapur e o distribuía ao redor do complexo de escadas e paredes, passando sob o templo e dando assim a
impressão duma ilha nascendo das águas abençoadas da Deusa. Sob as ruinas dos templos de Anahita foram encontradas fontes encrustadas nas rochas e o som sagrado das suas invocações era chak-chak, significando “gotejar” na língua persa. Fontes gregas mencionam a existência de um templo dedicado a Anahita em Ektabana, a antiga capital do império persa, construído de troncos de cedro cobertos com placas e blocos de prata e ouro. O altar deste templo foi destruído pelo imperador Alexandre, revoltado pela morte do seu fiel amigo, que não tinha sido curado pela deusa. Saques posteriores foram feitos pelos exércitos gregos, mas em 210 a.C. quando o rei Antiochus, “o Grande”, chegou no lugar, as colunas do templo ainda eram revestidas com ouro e prata e o chão coberto com pilhas de placas destes metais, arrancadas das paredes, mas abandonadas.
Por personificar a fertilidade da água, ela era a padroeira da procriação e dos nascimentos e o hieros gamos
”casamento sagrado” fazia parte dos seus rituais. Filhas das famílias nobres eram entregues aos templos para
servirem por algum tempo como hierodulas ou “prostitutas sagradas”; na Babilônia as jovens da nobreza
ofertavam à Deusa sua virgindade. Os ritos sexuais e a prostituição sagrada que aconteciam nos seus templos visavam purificar a concepção e a geração de filhos abençoados por ela.
Com o passar do tempo, o enfoque dos rituais de Anahita passou a ser o seu aspecto marcial como deusa padroeira da guerra e doadora das vitórias. Os guerreiros e chefes das tribos faziam grandes sacrifícios de animais brancos invocando a sua proteção e ajuda. Após os sacrifícios havia uma ceia comunitária com farto consumo da carne e de uma bebida ritualística – haoma - que induzia um estado alterado de consciência para favorecer a comunhão com os deuses. Nas escavações de um templo em Turcomenistão foram encontrados resíduos de uma bebida fermentada contendo a planta éfedra e vasilhas com restos de ópio. Na
época do Zoroastro nos rituais de proteção e louvação, a bebida haoma era abençoada com encantamentos
especiais, para afastar os maus espíritos e preparar o caminho para o contato com os deuses.
Com a chegada do zoroastrismo (em torno de 600 a.C). a importância ancestral de Anahita foi diminuindo e ela foi relegada à condição de espírito guardião das águas. Mesmo assim, havia um hino dedicado a ela como “a deusa encarregada pelo deus supremo Ahura Mazda (“O Senhor sábio”) para zelar sobre toda a criação”. Nesta condição, ela recusava os pedidos dos guerreiros sanguinários e protegia apenas aqueles que eram íntegros e puros de coração, excluindo os mentirosos, traidores, covardes, corruptos, agressores, malvados, perjúrios, portadores de deficiências físicas ou marcas de nascença (considerados pecadores). Era invocada pelos guerreiros para lhes conferir coragem e pelos sacerdotes e magos para receberem sabedoria e intuição.
Os mazdeístas (fieis do deus Ahura Mazda) cultuavam os vegetais de cujos lenhos extraíam o fogo, sendo a mais importante haoma, a figueira, tida como a Árvore Sagrada de seus frutos diziam obter o sumo que afugentava a morte. Em seu aspecto religioso, mas assim mesmo simbólico, o mazdeísmo tinha como principal culto o do Fogo. No ritual o sacerdote, no meio de um círculo formado de homens e mulheres, friccionava uma haste vertical, extraída da árvore sagrada, no orifício de uma madeira colocada horizontalmente no solo. Neste orifício, derramava-se manteiga clarificada e, após demorada fricção, da haste vertical surgia o Fogo Sagrado, considerado expressão da Luz e da Vida que retornava ao coração do Sol, o eterno Fogo do Espaço. Durante o ritual, a haste vertical expressava Atar, o poder positivo, masculino e a haste horizontal, Anahita, a passividade feminina ou a Água.
O encontro com ela se converteu em um único fim da existência dos místicos, que viviam à espera do instante da união, uma união sagrada simbolizada pela morte, o momento misterioso e supremo quando se fundiam com a sua amada deusa, sabendo que a aniquilação física conduzia à felicidade eterna. Esta concepção se assemelha ao mito das Valquírias da mitologia nórdica, as deusas guerreiras que decidiam a vitória nos combates, escolhiam os homens destinados a morrer e escoltavam os escolhidos para Valhalla, levando-lhes a bebida inebriante que lhes garantia a imortalidade.
A reverência à agua era o foco do culto de Anahita, pois dela dependia a fertilidade da terra, que garantia a
sobrevivência de animais e seres humanos; nos seus altares os fieis derramavam água de fonte ou chuva e pediam suas bênçãos.
Anahita também era regente da magia e seus sacerdotes - os Magi - deram origem aos termos magus e magia; eles recitavam textos secretos nas suas reuniões e ofertavam encantamentos sagrados para a deusa na lua nova e em datas especiais.
O Avesta (conjunto de livros sagrados dos antigos persas) descrevia a deusa Anahita como uma deusa extraordinariamente alta e forte, de aspecto impressionante, admiravelmente bela e cheia de joias. Suas sobrancelhas eram assemelhadas a espadas e arcos, seu olhar com lanças e seus cílios parecidos com adagas. Feroz e ameaçadora; terna e sedutora; muito difícil e misteriosa, e extremante provocadora.
Fonte: Mirella Faur