A
Carta da Terra, um dos documentos éticos mais consistentes dos últimos anos e já assumido pela Unesco representa a nova consciência ecológica da Humanidade. O texto abre com estas palavras dramáticas:
"Estamos diante de um momento crítico na história da Terra, numa época em que a Humanidade deve escolher o seu futuro... ou formar uma aliança global para cuidar da Terra e uns dos outros, ou arriscar a nossa destruição e a da diversidade da vida".
Esse alarme não é infundado, pois nas últimas décadas temos construído o principio da autodestruição. A máquina de morte das armas nucleares, químicas e biológicas é de tal destrutividade que somente com uma porcentagem delas podemos danificar substancialmente a biosfera e abortar o projeto humano. Como espécie Homo sapíens et demens - temos ocupado já 83% do planeta, explorando para nosso proveito quase todos os recursos naturais. A voracidade é tal, que temos depredado os ecossistemas a ponto de a Terra ter superado já em 20% sua capacidade de suporte e regeneração. Mais ainda, fizemo-nos reféns de um modelo civilizatório depredador e consumista que, se universalizado, demandaria três planetas semelhantes ao nosso. Evidentemente isso é impossível, o que comprova a falta completa de sustentabilidade de nosso modo de produção, distribuição e consumo de bens e serviços. Não são poucos os analistas do estado da Terra que advertem: ou mudamos de padrão de relacionamento com a Terra ou vamos ao encontro do pior.
A URGÊNCIA DA ESPIRITUALIDADE NA CRISE ATUAL
É nesse contexto dramático que surge a urgência da espiritualidade, que possui um valor em si, independentemente das conjunturas históricas, como essa descrita acima. Mas, atualmente, em situação de alto risco, parcamente conscientizado pela maioria dos seres humanos, ela é invocada urgentemente, pois representa uma das fontes secretas de um novo modo de ser que nos poderá salvar. Por que, exatamente, a espiritualidade? Porque em seu seio, normalmente, irrompem os grandes sonhos para cima e para frente, sonhos que podem inspirar práticas salvacionistas. Notáveis antropólogos, como Claude Lévi-Strauss e C. Geertz, têm afirmado que quando um paradigma civilizatório entra em crise, quando as estrelas-guias se obnubilam e o horizonte de esperança de um povo perde sua capacidade de gerar sentido, emerge, irreprimivelmente, a espiritual idade. É o que ocorre hoje, praticamente, em todas as culturas e no mundo inteiro.
Que significa aqui a espiritualidade? Sem detalharmos a resposta que surgirá logo a seguir, espiritualidade é uma nova experiência do ser, o irromper de um novo sonho, o vislumbrar de uma outra ordem, capaz de ordenar o caos que se instalou. Trata-se aqui de uma experiência de sentido novo, e não de um saber codificado. Tudo o que tem a ver com a experiência profunda do ser humano, com seu mergulhar nas raízes últimas da realidade, antes que esta se organize em ordem e sistema, em saber e instituição, constitui o campo da experiência do espírito, donde vem espiritualidade. Espírito representa a força criadora e ordenadora presente no ser humano, a capacidade de rasgar sentidos novos a partir das virtualidades presentes na própria realidade. Desta experiência espiritual nascem os paradigmas civilizacionais, capazes de fazer outra história e suscitar esperança às comunidades humanas e às pessoas.
Normalmente, a espiritualidade encontra seu nicho natural no seio das religiões. Elas nascem da experiência espiritual do fundador, do profeta e do carismático. No seio delas se elaboram as grandes utopias da Humanidade, visões de um sentido que transcende a fugacidade dos tempos e alcança a transcendência e a eternidade. Em épocas de crise, constituem elas o húmus fértil de novas perspectivas. São elas que permitem a passagem de um paradigma a outro, mantendo o continuum da história humana. Mas a espiritualidade não configura monopólio das religiões, embora sejam o campo privilegiado de sua emergência e expressão. A espiritual idade representa uma dimensão do profundo humano. Ela pertence estruturalmente ao ser humano com o mesmo direito de cidadania como o poder, a sexualidade, a racionalidade e o enternecimento Por isso ela emerge nas pessoas mesmo que estas não tenham nenhuma inscrição religiosa definida. Esta espiritualidade antropológica deverá ser evocada quando abordarmos o tema da espiritualidade e da ecologia.
Por fim, há de se superar o antropocentrismo, tão visceral em nossa cultura. A espiritualidade se dá nas religiões e em cada ser humano, mas ela vai além, se encontra também na própria estrutura do universo. O espírito está em nós porque, anteriormente, está no universo, do qual somos parte e parcela. A Carta da Terra alude a isso quando se refere ao nosso "parentesco com toda a vida" e ao "mistério da existência", em face do qual cabe nossa "reverência, humildade e gratidão”.
Em nossa exposição obedeceremos à seguinte estratégia: em primeiro lugar, consideraremos a contribuição da espiritualidade de fundo religioso para a preservação ecológica; em segundo lugar, nos acercaremos da espiritualidade antropológica e seu significado para a ecologia; e, por fim, a espiritualidade cósmica como derradeira atitude de benevolência e comunhão com toda a realidade.
A ESPIRITUALIDADE RELIGIOSA: O MUNDO É SACRAMENTO
As religiões todas vêem a realidade sub specíe aetemítatís (na perspectiva da eternidade), vale dizer, na ótica de Deus. Deus é experienciado como a Fonte originária de todo o ser. Ele é experienciado como criador, provedor e sustentador do céu e da terra e de tudo o que eles contêm. Ao criar, ele deixou marcas de seu gesto divino em todas as coisas. Todas são seus filhos e filhas. Ele não se deixa ver diretamente. Mas transparece em tudo que saiu dele. Por isso o universo, as estrelas, a imensa diversidade dos seres, especialmente os vivos e entre eles os seres humanos, comparecem como sacramentos de Deus. Vale dizer, são sinais de sua inefável presença e instrumentos de sua atuação no mundo. Ele não tem senão nossos braços para mover o mundo humano.
Para a pessoa religiosa, tudo vem perpassado de energias divinas, como o testemunham tão bem as religiões afro-brasileiras entre outras. Em face delas, se impõem a reverência, o respeito e a devoção. Deus está presente no mundo e o mundo em Deus, sem distância e mediação. É o que a teologia cristã chama de panenteísmo e que outras tradições conhecem por termos equivalentes. Mas importa não confundir panenteísmo com panteísmo. No panteísmo, tudo, indiferenciadamente, é Deus: os objetos, as montanhas, cada pessoa. No panenteísmo se mantém a diferença irredutível (um é Criador e o outro é criatura), mas se acentua a mútua presença e a interpenetração.
Na teologia cristã se prolonga esta intuição com a fé na encarnação de Deus. Ele assumiu o ser humano e, através dele, de alguma forma, todas as coisas. Elas começam a pertencer a Deus. Deus se faz ser humano para que ó ser humano junto com todo o universo se faça Deus. Tal evento confere uma dignidade inaudita a cada criatura, pois comparece como lugar onde Deus mesmo pode ser encontrado.
Diz-se também que o Espírito penetrou a criação, vitalizando-a e conduzindo-a rumo a sua culminância bem-aventurada, quando explodirá e implodirá para dentro de Deus. Uma antiga tradição transmitida pelos místicos da Igreja Ortodoxa grega diz: "O Espírito dorme na pedra, sonha na flor, acorda nos animais e sabe que está acordado nos seres humanos." Ele é o Spírítus Creator. Esta é a compreensão dos professantes da fé cristã. Isso, entretanto, não é ainda espiritualidade, mas doutrina. A espiritualidade surge quando a doutrina deixa de ser doutrina e passa a ser experiência interior, quando passa do intelecto para o coração. Então ela se transforma em comoção e celebração Não basta dizer que todos os seres são filhos e filhas de Deus. Para fazer surgir a espiritualidade, importa sentir essa verdade, abraçar a cada ser, cuidar dele como se cuida de um ente querido. Foi o que vivenciou Francisco de Assis com sua mística cósmica. Abraçando o mundo, ele estava abraçando Deus e vendo-o na lesma do caminho, no irmão Sol e na água cristalina.
Essa experiência é carregada de conseqüências ecológicas. Precisamos de reverência e cuidado em face de cada ser. Aí descobrimos a fraternidade e a sonoridade universais. Só assim pomos limites à nossa voracidade e regressamos à comunidade terrenal e cósmica da qual nos exilamos.
ESPIRITUALlDADE ANTROPOLÓGICA: O PONTO DEUS
O ser humano possui, em primeiro lugar, exterioridade expressa pelo corpo. Mediante ele, somos parte do universo, compostos com os mesmos elementos físico-químicos que as estrelas, e nos fazemos presentes uns aos outros. Em segundo lugar, o ser humano possui também interioridade expressa pela nossa psique. É o universo de desejos, emoções, imagens poderosas, arquétipos, idéias, visões de mundo que estão dentro de nós. Ao captarmos pelos sentidos corporais e espirituais ou pela intuição as coisas, elas são internalizadas e se transformam em imagens e símbolos. Elas falam e nós podemos captar sua mensagem. A montanha não é apenas montanha. Ela nos evoca majestade. O mar encapelado não é apenas mar. Ele nos faz entender o que é a violência indomável. Os olhos de uma criança não são apenas olhos. Eles revelam o mistério e a profundidade da vida. A pessoa amada, já o dizia Freud, é sempre também a pessoa imaginada, idealizada e transfigurada.
Nós não existimos senão que coexistimos, sempre junto com outros seres com os quais mantemos relações de troca e de inter-retro-dependência. Nosso eu não fica recluso em si mesmo, mas ele é habitado pela casa que habitamos, pela rua familiar em que moramos, pela cidade natal em que vivemos, pelo local de trabalho onde exercemos nossa profissão, pelos animais domésticos, pelas paisagens inesquecíveis de nossa história pessoal, pela pátria que amamos e pela Terra, a única Casa Comum que temos para habitar. Essas realidades não são meros fatos, são valores, o mundo das excelências. Sem eles morreríamos de esterilidade e de solidão.
O ser humano possui também profundidade. Só ele coloca questões terminais, sempre presentes na agenda humana: de onde viemos, para onde vamos, que estamos fazendo aqui no mundo, que podemos esperar depois desta vida, por que sofremos com a traição do amigo e choramos tanto com a morte da pessoa querida? O que se esconde por detrás das estrelas? Qual é o fio condutor que tudo sustenta e faz com que o universo não caia sobre nossas cabeças, mas surja como harmonia sutil que encantou os salmistas como Davi e fascinou cientistas como Einstein? Por que o ser humano é perpassado por uma ânsia infinita de felicidade e de vida sem fim? Ele identificou na evolução cósmica aquele Vazio fecundo, aquele Estado de energia insondável de fundo, do qual tudo promana, a presença do Mistério que cerca todas as coisas, que as culturas humanas chamaram de Deus. Com Ele pode se relacionar na oração, que é um dialogar e intercambiar amorosamente com Deus. Pode entregar-se à meditação pela qual escuta o que Ele tem a dizer. Quando tais eventos bem-aventurados surgem, aparece aquilo que é a dimensão do profundo do ser humano, aquilo que chamamos espírito. Especialmente aparece o espírito quando na nossa consciência nos sentimos parte e parcela do Todo que nos desborda. E quando emerge em nós a responsabilidade pelo mundo ao nosso derredor, damo-nos conta de que podemos ser o Satã da Terra, bem como seu anjo bom e protetor. Somos chamados a ser o jardineiro que cuida e completa a obra deixada incompleta por Deus. É então que irrompe em nós a dimensão ética, de cuidado e responsabilização pelas coisas ao nosso redor. Espiritualidade consiste em cultivar esse espaço de profundidade, em enriquecer o centro de nós mesmos, em alimentar a dimensão do espírito com a amorosidade, a solidariedade, a compaixão, o perdão e o cuidado para com todas as coisas. Por tais valores e atitudes se revela o espírito e se urde a espiritualidade. Quando vivemos esta espiritualidade nos sentimos engrandecidos e nos descobrimos como projeto infinito. Somente o Infinito pode saciar nossa fome infinita.
Pesquisas recentíssimas, do final do século 20, feitas por neuropsicólogos (Michael Persinger e V. S. Ramachandran), por neurologistas (Wolf Singer), por neurolingüistas (Terrance Deacon) e por técnicos em magnetoencefalografia, detectaram o que foi chamado o "ponto Deus" no cérebro. Sempre que se abordam as questões espirituais elencadas acima verifica-se empiricamente uma excitação nos lobos frontais do cérebro. Esses lobos frontais estão ligados ao cérebro límbico, o centro das emoções e dos valores. Isso significa que a percepção do "ponto Deus" está vinculada não a uma idéia, mas a um fator emocional e experiencial, como dizíamos, à espiritualidade. Esse "ponto Deus" surgiu no processo cosmogênico e antropogênico para atender a um propósito evolutivo: captar e conscientizar, através do ser humano, a presença de Deus na dinâmica universal e em cada coisa. É no ser humano que irrompe esta consciência de Deus e do Sagrado. É nele que se elabora a espiritualidade. Em razão disso, afirmam estudiosos como a física quântica Danah Zohar e o psiquiatra lan Marshall que nos seres humanos não vigora apenas a inteligência intelectual e a inteligência emocional, mas também a inteligência espiritual.
Transformando esse dado objetivo, a inteligência espiritual, em projeto consciente, reforçamos a espiritualidade como dimensão central de uma vida aberta, sensível, atenta às múltiplas dimensões do humano. Esta espiritualidade nos leva a cuidar da vida em rodas as suas formas porque vemos nelas excelência e valor. Tudo que existe merece existir. Tudo que vive merece viver. Ela nos ajuda a superar a perigosa lógica do interesse, dominante hoje, pela qual dominamos e nos apropriamos das coisas para o nosso uso e desfrute. Ela nos facilita a darmos lugar à lógica da convivência, da cordialidade, da reverência em face da" alteridade e da comunhão com todas as coisas e com Deus. A integração da inteligência espiritual às outras duas formas de inteligência (a intelectual e a emocional) nos abre à comunhão amorosa com todas as coisas, numa atmosfera de respeito e de reverência para com os demais seres, a maioria deles muito mais ancestrais que nós, acolhidos como companheiros e companheiras na grande aventura terrenal e cósmica.
O UNIVERSO AUTOCONSCIENTE E ESPIRITUAL
Nas reflexões da moderna cosmologia e física quântica (como em David Bohm, lIya Prigogine, Danah Zohar, Brian Swimme, A Goswami e outros) se sustenta a tese segundo a qual a consciência e o espírito são fenômenos quânticos, que emergem do transfundo das infinitas virtualidades da Fonte alimentadora de tudo (vácuo quântico). Assim como nosso ser físico surgiu no processo cosmogênico, assim também nosso ser espiritual. Ambos são tão ancestrais como o universo. Por espírito se entende a capacidade das energias primordiais e da própria matéria de interagirem entre si, de se autocriarem (autopoiese), de se auto-organizarem, de se constituírem em sistemas abertos, de se comunicarem e formarem teias cada vez mais complexas de inter-retro-relações que sustentam o inteiro universo. O espírito é fundamentalmente relação, interação e auto-organização em distintos níveis de realização. Desde o primeiríssimo momento da explosão primordial criaram-se relações e interações, gestando unidades ainda rudimentares (dois quarks e prótons) que foram se organizando de forma sempre mais complexa. Era a alvorada do espírito. O universo é cheio de espírito porque é reativo, pan-relacional e criativo, nesse sentido não há seres inertes, à diferença de outros seres, chamados vivos. Todos participam, em seu grau, do espírito, da consciência e da vida. A diferença entre o espírito de uma montanha e o espírito humano não é de princípio, mas de grau. O princípio de interação e criação se realiza em ambos, apenas de forma diferente. O espírito humano é esse espírito cósmico que chega à autoconsciência, à fala e à comunicação consciente. O espírito que perpassa todas as coisas ganha uma concretização especial nos homens e nas mulheres. Se o espírito é vida e relação, então o seu oposto não é matéria, mas morte, ausência de relação. A matéria é um campo altamente carregado de energia e de interações. Espiritualidade, neste contexto, é a potenciação máxima da vida, é compromisso com a proteção e expansão da vida. Não apenas da vida humana, mas da vida em toda a sua incomensurável diversidade e em todas as suas fases de realização.
Vivenciar o universo como vivente, a Terra como Gaia, superorganismo vivo e Grande Mãe, sentir a natureza como fonte de irradiação vital e comungar com cada ser que encontramos como portador de propósito, irmão e irmã de aventura nesse imenso universo, é mostrar-se um ser espiritual, é realizar a espiritualidade ecológica em grau eminente, hoje absolutamente necessário à sobrevivência da biosfera.
O futuro da Terra como um planeta pequeno e limitado, da Humanidade que não para de aumentar, dos ecossistemas fatigados pelo excessivo estresse do processo industrialista, das pessoas humanas, confusas, perdidas, espiritualmente embotadas mas ansiosas por formas de vida mais simples, transparentes, autênticas e cheias de sentido, esse futuro depende de nossa capacidade de desenvolvermos ou não uma espiritualidade ecológica. Não basta sermos apenas racionais e religiosos. Mais que tudo, temos que ser sensíveis uns aos outros, cooperativos em todas as nossas atividades, respeitadores dos demais seres da natureza; numa palavra, devemos ser espirituais. Só então irradiaremos como seres responsáveis e benevolentes com todas as formas de vida, amantes de nossa Mãe Terra e veneradores da única Fonte donde promana todo ser e toda bem-aventurança.
Texto de Leonardo Boff
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