Quando a nave Apollo nos forneceu imagens da Terra, a humanidade encantou-se e percebeu-se pertencente como os oceanos e as nuvens e toda a vida, ao Planeta Azul. Inaugurava-se naquele instante um novo modelo de percepção de nossa morada cósmica, onde oceanos, nuvens, continentes e toda a diversidade dos seres que a habitam, a humanidade inclusive, formavam um todo. Resgatamos a visão dos gregos de Gaya – o organismo vivo - nossa morada evolucionária comum. Desvelaram-se reflexões que nos abriram para um outro olhar de ser parte de um planeta , parte da constelação de Órion, parte da Via Láctea, pairando no espaço numa linda esfera azul. Vimos que a Terra é, ao mesmo tempo, uma poeira cósmica flutuando na imensidão das galáxias e uma grandiosa dimensionalidade para nós humanos e toda a legião de minerais, plantas e animais que através dos tempos a compõem e habitam.
Parafraseando o filósofo grego Hermes Trimegisto quando nos dizia que assim como está em cima está embaixo, assim como se apresenta fora está dentro, podemos fazer uma analogia entre nosso planeta Terra e cada expressão de vida que o habita. Sabemos que a água, assim como o fogo, a terra e o ar, são os elementos que estruturam a vida. A filosofia taoísta nos fala de um quinto elemento, o som, aspecto que se reforça em algumas tradições espirituais como a cristã, onde no Gênese é dito : “No princípio era o verbo”...
Vejamos o corpo humano: assim como nosso planeta, é composto dos mesmos 70% de água. Somos compostos pelos mesmos elementos da Mãe Terra, por sermos seus filhos e filhas, e assim como ela, para que tenhamos uma vida harmoniosa e saudável, temos que equilibrar nosso sistema físico, composto pelos mesmos elementos, em movimentos de expansão e contração - nossa respiração, gesto primeiro que realizamos ao sair do útero de nossas mães para o mundo. Indo mais fundo em relação à complexa estrutura humana, podemos fazer a analogia entre a objetividade e a subjetividade, associando o elemento terra à razão, o ar à sensação, a água aos sentimentos , fogo ao espírito , por seu caráter purificador e incorruptível. Todos os aspetos integrados por serem expressões diversas de uma mesma e insondável origem. Assim, podemos perceber cada um de nós, como um planeta em miniatura, parte de uma imensa galáxia-vida, buscando preservar-se em equilíbrio, numa dança cuja melodia convoca cada um a desejar ser pleno e feliz!
Porém, ao longo de nossa evolução civilizacional, fomos dominados por um estranho sono, que tem nos levado a perder a realidade do pertencimento a todas as coisas. Fragmentamo-nos deste tecido tão delicado e cuidadosamente bordado pela ânsia da vida por si mesma. Construímos uma percepção do mundo excludente e centrada no ser humano, criando a ilusão de que toda a vida que nos cerca é um cenário para a expressão da criatividade humana. Passamos por cima da integridade de todas as coisas, necessária para que o sistema – vida permaneça em equilíbrio. Estamos comprometendo coisas muito sagradas!
Vivemos uma realidade que se expressa no desequilíbrio das guerras, da fome, da exclusão, da poluição, do lixo, do buraco na camada de ozônio, da extinção de espécies, e da prepotência e opressão nas relações entre seres de nossa própria raça humana. Todos estamos sentindo, de alguma forma, os ecos dessas loucuras! Os noticiários dos últimos dias nos mostram pessoas perplexas, que se debatem aos gritos em torno das cifras das bolsas de valores, porque o sistema que criamos se estrutura em torno de papéis, e que se tornou uma força onipotente, onipresente e onisciente, numa governança macabra. Esse é um valor sobre o qual se estruturam vidas inteiras, as nossas inclusive, quer queiramos quer não.
As águas que nos encantaram pelo profundo azul estão se tornando perigosamente escuras e opacas. A terra generosa, ameaçada por desmatamentos, pelo uso de agrotóxicos, pesticidas e fertilizantes, além das bombas das guerras que explodem abalando sabe-se lá o que nas profundezas...O fogo – ou calor - está provocando profundas mudanças nos climas, aspectos que os cientistas e ecologistas vêm alertando há décadas, trazendo necessidade de mudanças urgentes. O ar se contaminando. O lixo – resultado do consumo irresponsável - com o qual poluímos as águas e terras, manifesta-se igualmente em nós: há muito lixo químico e residual nossos alimentos, que acabam poluindo nossos corpos. Há muito lixo mental e emocional sendo gerado em nossas mentes e corações.
No processo evolucionário da vida nós, seres humanos, somos – como definiu Leonardo Boff - a parte da evolução que adquiriu consciência de si, do outro e da natureza, sentimentos e o dom de pensar e enternecer-se. 99,98% de tudo o que entendemos por vida existia, relacionava-se, interconectava-se para gerar mais vida! Sabemos que tudo isso não é dom de uma espécie. É o momento de despertar e admitir que não somos a única expressão sagrada da Criação, de que tudo se relaciona com tudo, numa teia de interdependências, em processo.
As águas de março que anunciando o final do verão - como poeticamente nos lembra o músico Tom Jobim - vem nos evocar a existência da sabedoria da vida em seus ciclos. Nunca é demais lembrar que a Vida se perpetua nas mudanças, honrando os ciclos, e preserva um dinâmico e complexo equilíbrio, como abordamos inicialmente, entre todos os elementos que compõem a grande família dos filhos e filhas da Terra.
Voltando à analogia do início desta reflexão, pensemos nos rios de nosso corpo: a água vermelha de nosso sangue fluindo nos rios internos renovando-se com os movimentos do inspirar e expirar do sagrado sopro que nos faz ser! Pensemos no fogo, no calor de nossos corpos e dos sonhos e esperanças que podemos aspirar e realizar quando se está em saúde e paz. Conectemos com a terra que nos habita e nos dá a identidade de um rosto e o ritmo de um coração que pulsa! Sintamos o espírito da liberdade de que fomos dotados, que nos permite fazer escolhas e definir rumos, e resgatar a plena amorosidade respeitosa e a reverência para com todas as expressões de vida, de um bem-te-vi a um golfinho, de uma roseira a uma estrela, dos povos do mundo a uma anêmona do fundo do mar. Tudo isso precisa ser honrado!
Iniciativas individuais e coletivas são fundamentais . Parcerias entre os diferentes segmentos da sociedade criam laços, e podem ser sinais de que estamos saindo do estranho sono, despertando para um outro momento. A humanidade tem um forte compromisso na imbricada teia de relações que chamamos Vida.
Temos um tesouro, conquistado com o esforço das mentes e dos corações humanos, e com profunda inspiração espiritual: A Carta da Terra. Precisamos tirá-la do papel e da utopia de um mundo solidário e fraterno e enraizarmos ações que apontem na direção de um novo patamar civilizatório: uma era ecozóica e planetária , alicerçada sobre as bases de um novo pacto ético.
Houve um tempo em que depois de abundantes águas caídas do céu, um arco íris desenhou promessas de novos tempos e de novos laços de harmonia entre as energias do céu e da terra. As sementes, nós as temos em nossas mãos!
O próximo dia 22 de março é o dia de celebrarmos o sagrado elemento que nos trouxe ao mundo: o Dia Mundial da Água.
É chegado o momento da humanidade esboçar o seu arco íris de aliança numa ética de solidariedade entre todos os seres, para que seja possível um novo jardim de delícias sobre a Terra, o nosso planeta azul.
Nota sobre a autora: Regina Stella Quintas Fittipaldi é Arquiteta e Urbanista formada na Universidade de Brasília , Pós Graduada em Gestão Ambiental em Cidades, Sócia-proprietária da Fittipaldi Arquitetura Ltda , Ambientalista, Pró-Reitora de Meio Ambiente da UNIPAZ – Universidade da Paz, Vice Presidente da Fundação Cidade da Paz. Poeta premiada em concursos literários, escritora de livros e peças de teatro infantis . Membro do Colégio Internacional dos Terapeutas. Mãe de Adriana e Eduardo.
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